30 de maio de 2010

Fúria Lupina Brasil - Degustação 4


Nota: este é um capítulo de degustação do livro "Fúria Lupina - Brasil" (2010). Para ler outros capítulos, CLIQUE AQUI.

A Reunião

Quem vê Caroline sentada no sofá da sala de estar, com a cabeça repousada no colo da mãe, assistindo o desenho animado “Bicudo o Lobisomem”, não desconfia que esta garotinha bonita e sorridente seja aquele bebê que, há uma década, nascia neste mesmo casarão de fazenda, numa fria madrugada coroada por uivos e celebrações.
Ela tem pleno conhecimento de sua condição, e espera ansiosamente o momento de sua primeira transformação. Segundo Rui, seu pai, isso só será possível quando a fisiologia lupina fizer parte de seu frágil corpo humano.
No ano passado, em seu aniversário de nove anos, Caroline perguntou ao pai quando ela saberia que seu corpo estaria pronto para a metamorfose que ela tanto deseja. Também falou sobre seu grande temor, o de simplesmente não ser capaz de se tornar uma mulher-lobo. “Você será capaz, posso afirmar”, disse ele, “pois foi sangue de lobo que provei ao te segurar entre minhas mãos, nos seus primeiros instantes neste mundo.”
Isso a acalmou, pois seu pai é a pessoa em quem mais confia, e a que mais respeita. Ela apenas ficou intrigada com a resposta que veio em seguida, mais nebulosa do que gostaria: “Estará pronta quando um novo sentido sobrepujar todos os já existentes.”
Rui Lopo recebe, na varanda de sua casa, três amigos íntimos. A primeira a chegar foi a matriarca da família Pastrana, Júlia. Logo em seguida, André e Lucinda Veiga saúdam os presentes e se acomodam em cadeiras ao redor da mesa redonda, sobre a qual repousa uma jarra de suco de maracujá gelado, copos e uma carta.
O início de tarde está agradável e quente, e o suco é muito bem recebido por todos. Já a carta não é tão bem-vinda, e seu conteúdo é o motivo desta reunião. Trata-se de uma convocação, para uma conversa com Pernambuco Nogueira, conhecido político da cidade de Joanópolis, e com o delegado Adão Fuller, na delegacia da cidade.
As três famílias são formadas por homens-lobo, já bem instaladas em pontos isolados da cidade. Os Lopo e os Veiga são originários de Portugal, e os Pastrana do México. Quando, cada um a seu tempo, optaram por fincar raízes aqui, procuraram “domesticar” sua fúria ancestral, de maneira a não prejudicar a população local, convivendo pacificamente. Quando se transformam, sempre o fazem em áreas afastadas, em meio a matas densas e montes de difícil acesso.
Possuem criações de animais para aplacar sua fome, mantém plantações e inclusive têm alguns de seus membros trabalhando na cidade, no comércio e no turismo. Aprenderam a ser reservados, a respeitar o povo e a amar Joanópolis.
A carta, apesar da escrita rebuscada e da cordialidade das palavras, transparece discretamente certo tom de ameaça, algo do tipo “nós sabemos o que vocês são”. O receio de perder tudo o que têm conquistado há gerações alimenta a discussão do quarteto, definindo estratégias, formulando defesas e até levando em consideração a possibilidade de propor algum tipo de acordo. Eles querem a todo custo evitar um conflito, que levaria a um banho de sangue e, consequentemente, a um exílio das famílias.
Chegada a hora de partir para a reunião, entram no carro Rui e sua esposa Aline, acompanhados de Júlia, já cientes de como proceder. A estratégia adotada foi a da cautela, e até mesmo da negação, caso não tenham provas concretas de sua natureza. Da janela do carro, Rui chama seu filho Rômulo e pede para que cuide de sua irmã, porque seu irmão gêmeo, Remo, está fazendo compras na cidade.
O carro parte, e um temor silencioso flutua sobre o trio, durante todo o trajeto até a delegacia. Todos têm um forte sentimento de que algo intenso acontecerá a todos hoje, e não sabem dizer se essa sensação é boa ou ruim. Resta agora encarar a situação com toda a coragem com a qual foram agraciados, e arcar com as consequências dela advindas.
Chegando à delegacia, eles foram encaminhados a uma sala de reunião nos fundos. Os três acomodaram-se em cadeiras estofadas, em frente a Adão e Nogueira, ao redor de uma grande mesa oval. Ás costas do delegado, uma ampla janela com as persianas levantadas deixa a sala às vistas de um grande contingente de policiais que por ali circula, com ares de despreocupação, mas que sempre tem alguém vigiando o interior do recinto, para o caso de alguma emergência. Uma clara demonstração de poder, visando a intimidação dos três. Pernambuco Nogueira inicia a conversa:
– Senhor e senhoras, não é de hoje que pessoas da área rural de nossa cidade vêm relatando avistamentos de criaturas de natureza indefinida, ameaçadoras e vorazes. Eu gostaria de saber se podemos ter alguma ajuda por parte de vocês para esclarecer este mistério?
– O que o senhor insinua? – a voz de Rui é calma.
– Insinuo que, caso essas ameaças não se afastem da minha cidade, serei obrigado a usar minha rede de conhecidos do governo federal para convocar o exército brasileiro, e iniciar a temporada de caça ao lobisomem!
– Veja bem, com base em que o sen... – Júlia é interrompida pela abertura repentina da porta.
– Não finjam mais! Ouçam o batido do seu horrendo coração denunciador! – Caroline aponta na direção do político. – Você é um mentiroso, e usa seu poder para intimidar, satisfazer seus torpes desejos!
Dois policiais abordam a menina e iniciam sua retirada da sala, ao mesmo tempo que Rui, Aline e Júlia se levantam. Rômulo e Remo são mantidos do lado de fora por outros policiais. O delegado imediatamente ordena que larguem a criança e deixem a sala. Também pede para que todos sentem-se novamente. Tal atitude foi movida por dois motivos.
O primeiro é que nunca havia ouvido tão calorosa referência a Edgar Allan Poe, muito menos vinda de uma criança. Além disso, o delegado não nutre muita simpatia por Nogueira, que sempre que pode usa seu cargo de poder para prejudicar alguém. Ele mesmo acha um absurdo esta reunião, mas foi, como sempre, pressionado pelo político.
– Isto é um ultraje! – reclama Nogueira, em tom indignado.
– Ofensa maior são os seus desmandos e obscenidades! Aos meus ouvidos chega o tamborilar do coração de um mentiroso, e meu olfato reconhece em você um perfume bem familiar, escondido sob uma camada de medo e de luxúria! É cheiro de sexo, com um leve traço de Lancôme. – os olhos de Caroline estão vidrados, e sua voz de criança soa estridente no interior da sala fechada.
O espanto se reflete no rosto de cada um dos adultos presentes. É tudo muito surreal: a menina não tem esse tipo de atitude, não utiliza o vocabulário que escapa de seus lábios, e fala de coisas das quais com certeza não tem conhecimento nem experiência. Mas quem está mais chocado é Adão. Foi ele mesmo que presenteou sua esposa com o perfume francês, que pediu para a um amigo do Rio de Janeiro trazer, quando ele foi para Paris nas férias.
A mulher até se gaba de ser a única da cidade a ter um Lancôme, que não deixa ninguém usar, pois sabe que levará um bom tempo até ter acesso a outro do tipo. A vontade que tem agora é de sacar a arma e tirar essa história a limpo, arrancar essa confissão do imoral sentado ao seu lado, mas seu lado profissional fala mais alto.
– Vocês são uma ameaça! – vocifera o político, batendo na mesa e levantando-se, fazendo com que a cadeira bata na parede às suas costas. Os policiais do lado de fora colocam-se em prontidão, mas são acalmados por um gesto do delegado.
– Temos atuado como os cães de guarda desta cidade, e vocês sabem bem disso. – a voz da menina é mais calma, porém enfática. – Você sabe bem o que aconteceu com o estuprador que aterrorizou esta cidade há vinte anos atrás. Os crimes na área rural são praticamente inexistentes, e isso é devido à atuação de nosso povo. Livramos inclusive o seu filho de uma emboscada nos limites da cidade, arquitetada por vingança à sua pessoa.
– Não envolvam minha família niss...
– Cale a boca! – a mão forte do delegado força-o a sentar-se novamente, e Adão apressa-se em fechar as persianas da janela. – Senhor Rui, peço desculpas pelo mal-entendido. Saibam que todos têm o meu apoio a partir de hoje, sempre que precisarem podem me procurar. É uma honra tê-los por perto. Vocês estão liberados. Peço licença para que eu possa usar esta sala para uma conversa particular com o excelentíssimo senhor Pernambuco Nogueira.
Rui mentaliza o termo “desfazer vínculo” e conduz para a saída a criança desorientada e confusa. Ela se sente como se acabasse de despertar de um sonho maluco, sem sentido. Após se despedir de Rui e das mulheres, o delegado fecha a porta atrás de si, cruzando os braços e fitando o político de maneira rude.
Nogueira limpa o suor frio da testa, sentindo-se como uma grande águia, cujas asas acabam de ser destroçadas. Ele amaldiçoa o presidente Figueiredo, que promoveu a maldita abertura política, tirando o poder de seus amiguinhos da ditadura, que lhe ofereciam cobertura aos seus desmandos. A conversa será longa, e acabará com um casamento desfeito, um pequeno ditador destituído e um profissional sério liberto das algemas do coronelismo.
***
Na propriedade dos Lopo, Rui tem uma conversa séria em família. O patriarca senta-se à cabeceira, tendo à sua direita seus filhos Remo, Rômulo e seu irmão Miguel, que mora ali perto. À esquerda, sua esposa e a abatida e assustada Caroline. Sua voz é calma e firme.
– Já sabemos que Caroline forçou Remo, logo que este chegou, a levá-la à cidade, nem deixando-o descarregar as compras do caminhão. Rômulo não conseguiu acalmá-la, nem convencê-la a mudar de ideia.
– Ela parecia que tava possuída! Até ameaçou a gente! – exclama Rômulo.
– Tudo bem, não o estou culpando disso, apesar dela ter ficado sob sua responsabilidade. Carol, explique-se.
– Hoje eu acordei esquisita, com o corpo muito quente. Eu achei que tava com febre, por causa do sorvete que tomei ontem. – a voz de Caroline é apagada, pois ela sente-se repreendida. – Depois que o senhor saiu, eu senti um negócio esquisito no peito, o coração batia sem parar. Aí eu comecei a pensar num monte de coisa esquisita, e a única coisa que eu queria era ir atrás de vocês.
– Eu acabei cedendo, porque senão ela ia correndo até a cidade. A gente levando, pelo menos tem dois marmanjos de dezoito anos tomando conta, né?
– Eu sei, Remo, e vou dizer porque não vou deixar nenhum de vocês de castigo: Caroline finalmente chegou ao último estágio: ela estabeleceu contato mental com a alcateia! Foi tudo muito repentino e acima de tudo precoce, pois isso ocorre por volta dos treze anos de idade. Por causa disso, ela ficou descontrolada e despejou um turbilhão de pensamentos da alcateia naquela sala. Quando ouviu o coração do político batucando por causa das mentiras que falava, puxou até um fiapo de um conto de Poe, que ela nunca leu na vida, e que com certeza veio da mente de Miguel, que é fã do escritor.
– Foi isso mesmo! – sorri o tio da garota. – Foi o que me veio à mente no momento em que senti o que ela ouvia. Na verdade, tínhamos muitos argumentos a utilizar como contra-ataque, mas aguardávamos apenas o momento oportuno, se fosse necessário. Mas essa pequena sem-noção jogou tudo na cara do patife, sem dar tempo de ninguém respirar! – todos riem, com exceção de Caroline, vermelha de vergonha.
– Bem, agora todos sabemos o que deve ser feito, correto? – Aline está orgulhosa, e não esconde isso de ninguém. – Vamos providenciar os preparativos para o ritual de iniciação, que será celebrado amanhã à noite!

2 comentários:

Anônimo disse...

Mto booooooomm
Ass: Rafaela.

Alfer Medeiros disse...

Obrigado, Rafaela. Espero que curta o resto do texto!

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